sexta-feira, 28 de agosto de 2009

“Será que o negro nem na hora de morrer tem dignidade?””


A juíza baiana Luislinda de Valois Santos

Infância e vida

O professor pediu o material de desenho, a custo o pai de Luislinda conseguiu comprar um, meio remendado. Pois bastou o professor ver o material para magoá-la para sempre. “Menina, deixe de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”. Ela chorou, ainda se emociona quando relembra, 58 anos depois. Mas tomou coragem e retrucou: “Vou é ser juíza e lhe prender”. A primeira parte, ela cumpriu. Em 1984, a baiana Luislinda Valois Santos tornou-se a primeira juíza negra do País. Não à toa, também foi quem proferiu a primeira sentença contra racismo no Brasil. Em 28 de setembro de 1993, condenou o supermercado Olhe Preço a indenizar a empregada doméstica Aíla de Jesus, acusada injustamente de furto. Aos 67 anos, lança em agosto seu primeiro livro, O negro no século XXI.

Como foi sua infância? Imagino que não tenha tido muitos recursos…

Faça uma pequena ideia (risos). Minha mãe era lavadeira e costureira e meu pai era motorneiro de bonde. Minha infância foi miserável, mas meus pais sempre primaram pela educação e pela nossa saúde. Quando eu tinha 9 anos, estava começan do a estudar, um professor pediu um material de desenho e meu pai, coitado, não pôde comprar o que ele pediu, mas comprou outro. Quando cheguei à escola, feliz da vida, ele disse: “Menina, se seu pai não pode comprar o material, deixe de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”. Imagine como foi marcante pra mim (chora). Saí chorando. Mas sou muito impetuosa. Voltei, fui em cima dele efalei: “Não vou fazer feijoada para branco, não. Vou é ser juíza e lhe prender”. Em casa, ainda tomei uma baita surra do meu pai. Naquela época, não se podia desrespeitar professor.

Começou a trabalhar cedo?

Com 7 anos, quis aprender datilografia e, para pagar o curso, minha mãe sugeriu que eu lavasse aquelas fraldas de pano que se usava na época. Aí fiz isso. Mas, trabalhar realmente, comecei com 14 anos, como datilógrafa. Comecei na Companhia Docas da Bahia e, logo em seguida, minha mãe tinha acabado de morrer, me arrumaram um trabalho no DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, hoje Dnit). Fui crescendo lá: trabalhei como escrevente, escriturária, chefe de orçamento. Estudei filosofia, não con cluí, depois comecei teatro, mas meu pai não me deixou cursar, disse que era coisa de prostituta. Aí, um dia, decidi fazer direito. Já tinha uns 34, 35 anos. Me inscrevi e passei na Universidade Católica. Me formei aos 39 anos, no dia 8 de dezembro e, no dia 9, começaram as inscrições para o concurso de procurador do DNER. Passei em primeiro lugar no Brasil. Mas não pude assumir aqui.

Por que não?

A pessoa que passou em último também era daqui da Bahia. Como eu não tinha padrinho político, algumas autoridades me puseram numa sala e falaram: “Doutora, precisamos da sua vaga aqui. Vamos lhe oferecer Sergipe ou Paraná”. Aí fa lei: como vocês estão me mandando embora, vou logo para longe. Fui para o Paraná. Com 90 dias, o chefe da procuradoria de lá se aposentou e fui designada para a vaga dele. Morei lá quase 8 anos.

Li que, antes de estudar direito, a senhora participou de um concurso de beleza. Como foi isso?

Trabalhava no DNER, tinha uns 20 anos, e um dia me chamaram na diretoria e falaram: “estão abrindo um concurso da Mais Bela Mulata e você vai ser a nossa miss” (risos). Aí eles foram falar com meu pai. Era de maiô e tudo, imagine… Meu pai ficou bastante reticente, mas por fim pediu a seu Rangel, que era o chefe do administrativo, para assinar um documento se responsabilizando pela minha integridade física (risos). A integridade física da época era a tal da virgindade, a preocupação era essa. Teve várias etapas. As mais importantes foram no Forte de São Marcelo e na Rua Chile, que era o point. Ganhei como Miss Simpatia.

E como se tornou juíza?

Estava em Curitiba e vim de férias para cá, soube do concurso pelo jornal A TARDE, que meu pai comprou. Falei: pronto, é agora. No dia seguinte, fiz a inscrição e as provas. Aí, uma noite, o telefone tocou e a menina disse que eu tinha sido aprovada. Acordei meia Curitiba, né? (risos). O fato de ser a primeira juíza negra do Brasil só me dá responsabilidade. Até hoje só temos dois ministros negros nos tribunais superiores. Por que isso? A inteligência não é privacidade de nenhuma raça. Até porque só existe uma raça, a humana. Ser juíza não é difícil. É só ter bom senso, estudar de manhã, meio-dia, de tarde e de noite e gostar de lidar com gente. Não pode pensar que, só porque o cidadão é marginal, ele já merece estar enclausurado. Primeiro se vai ver por que aquele sujeito virou marginal. A sociedade é quem escolhe quem vai delinquir. E te digo mais: nesse momento, a sociedade escolheu que é o negro, pobre, jovem, da periferia. Na hora que se tem de condenar, se não tiver a quem condenar, se condena o negro, mesmo que ele ainda esteja no ventre da mãe.

A senhora falou que não é “porque o cidadão é marginal que já merece estar enclausurado”. A sociedade espera uma resposta, de todo modo.

A sociedade não colabora para que as pessoas não cheguem a delinquir. O que é que se tem de dar? Oportunidades. Primeiro, educação de qualidade e continuada. Imagine uma pessoa que tem oito, dez filhos, se depara uma manhã sem ter o pão para alimentar seus filhos. Se não tiver muito equilíbrio, faz bobagem.

Já se viu diante de um caso desse? Como a senhora agiu?

Já, no interior. Resolvi da seguinte forma: fui até o prefeito e consegui um serviço de jardinagem para ele. A pena que dei foi que, com o primeiro salário, ele pagasse o que tinha pego. Nunca mais ouvi falar que esse rapaz fizesse nada de ilegal. Digo sempre o seguinte: se tiver eu e uma loira juntas, o que sumir primeiro, fui eu que peguei. É sempre o negro que é o delinquente de hoje.

No seu trabalho como juíza, ainda sofre muito preconceito?

Sou a sétima juíza mais antiga do Estado e nunca consegui ser convocada para o Tribunal. Me sinto preterida. Tenho certeza de que já era para eu ser desembargadora há muito tempo, preencho todos os requisitos. Para se saber o que é racismo, é só ficar negro por 48h. Certa vez, no juizado de Piatã, aproveitei o tempo para arrumar uns processos. Chegou uma advogada e falou: ‘O juiz vem hoje?’. Eu aí fiz um sinal para a moça não dizer que era eu. A advogada ficou lá, reclamando que juiz nunca chegava na hora, coisa e tal. Na hora da audiência, subi, pus a toga e, quando ela me viu, não acertou fazer nada. Tive de adiar a audiência. Falei: ‘Tenha paciência, a senhora toma um chazinho de erva-cidreira e, amanhã, nós continuamos’. Precisa maior racismo do que esse?

A senhora proferiu a primeira sentença contra racismo no Brasil. Como foi a repercussão do caso?

Me lembro bem. Aíla Maria de Jesus foi a um supermercado e quando estava saindo, o segurança a humilhou, disse que ela tinha posto na bolsa um frango congelado e dois sabonetes. Ela falou que, se ele chamasse a polícia, ela abriria a bolsa. Aí, a polícia chegou e viu que não tinha nada. Na época, a repercussão foi que o feitiço virou contra o feiticeiro (risos). Comecei a receber ameaças, o pessoal ligava para a minha casa dizendo: “Onde é que essa negra faz supermercado?” Fiquei com medo e pedi afastamento, resolvi voltar para Curitiba. Aí fui ao banco com meu filho, me sentei e ele foi resolver as coisas para mim. Passou um tempo o segurança ficou meolhando, depois veio outro, depois veio o gerente. E eu lá sem saber o que fazer. Pensei: se eu me mexer para pegar minha carteira de juíza, eles podem pensar que eu estou armada e me matar. Quando meu filho voltou, criei alma nova. Ele falou: “O que é isso com minha mãe?”. E o gerente respondeu: “Ela ficou muito tempo aí sentada”. Chorei a tarde inteira.

No livro O negro no século XXI, a senhora diz que “a Justiça é inacessível ao negro pobre”. A senhora é uma das idealizadoras do Balcão de Justiça e Cidadania, que atende moradores das periferias. Isso vem melhorando?

Sim. Criei o Balcão de Justiça e Cidadania, o Justiça Bairro a Bairro, Justiça Itinerante da Bahia de Todos-os-Santos e o programa Justiça, Escola e Cidadania, para levar a Justiça às escolas públicas. Recebi em Brasília, em 2006, o Primeiro Premio de Acesso à Justiça, pelo trabalho desenvolvido pelo Balcão. A ideia é resolver conflitos pela mediação, inclusive divórcios, separações, pensão alimentícia, que são os casos mais frequentes. As pessoas acham que, para ir até a Justiça, têm de estar com uma roupa muito arrumada, mas não precisa nada disso. Hoje, trabalho no juizado da Unijorge, que eu implantei.

Por que a Justiça na Bahia é uma das mais lentas no Brasil?

Primeiro, temos um número pequeno de magistrados e um número inaceitável de desembargadores. No Paraná, que é bem menor que a Bahia, são 120 desembargadores. Aqui, são apenas 35. É humanamente impossível. E a falta de recursos colabora bastante negativamente.

O movimento negro muitas vezes pleiteia políticas específicas, como as cotas. Isso não fere a Constituição, que diz que “todos são iguais perante a lei”?

Não se pode igualar os desiguais. Tudo que é inferior é encaminhado ao negro. As cotas são importantes, mas não permanentemente, porque senão parece esmola. É enquanto se equipara o ensino público e privado. O problema é que a qualidade da escola pública não melhora.

A maioria das vítimas de homicídio em Salvador são jovens negros. Qual é a parcela de responsabilidade da Justiça? Há apenas duas varas do júri para julgar esses casos.

Depois da visita a presídios, resolvi criar um projeto: Inclua no trabalho e na educação e exclua da prisão, para ocupar os jovens da periferia. A televisão fica com aquele ‘compre, compre, compre’. O adolescente vê um tênis e quer adquirir, seja como for. Pai e mãe também não têm condições, saem para trabalhar, deixam o menino sozinho. O que acontece? O traficante vai e coopta. O poder público é culpado por não dar condições para as famílias terem uma vida mais digna. Isso tudo vai desaguar no Judiciário, e falta estrutura.

No livro, a senhora também fala sobre aborto. É a favor da descriminalização?

Acho que se trata o assunto olhando somente a mulher pobre. A mulher rica faz aborto a todo instante, mas isso não vem a público, ela não morre, nem é presa. Acho que tem de deixar de ser crime, sim. Ninguém aborta porque quer.

A senhora é de santo, e o pastor Márcio Marinho, da Igreja Universal, assina a contracapa do seu livro. Como é a relação de vocês?

Me criei no candomblé, sou filha de Iansã. Acho que, primeiro, não se deve olhar a religião da pessoa,

mas sim quem ela é. Já fiz parcerias com a Igreja Universal, e eles sempre cumpriram o papel deles.

Entrevista publicada em Muito, revista semanal do grupo A Tarde, domingo, 26 de julho de 2009

Educação Sempre fui muito estudiosa, muito. Outro dia até estive na escola que estudei quando era pequena, na 2 de julho, na Fazenda Grande do Retiro. Fui lá dar uma força àquelas crianças, soube que estavam enveredando para o lado das drogas, sem dar atenção aos estudos. É falta de amor-próprio, mesmo. Fui lá e acho que consegui deixar uma boa mensagem. Na Bahia nós somos 89.9% de negros e temos poucos médicos, dentistas, nunca tivemos um governador negro, um prefeito negro. Precisamos ter procuradores, ministros negros. Só temos dois ministros negros nos tribunais superiores.

Racismo no trabalho

A todo instante a gente passa por isso. Recentemente, no mês de maio, eu estava no juizado da Faculdade Jorge Amado e uma advogada veio e sentou na minha cadeira. Eu olhei assim e pensei ‘não, não é possível’. Eu disse: ‘doutora, essa cadeira é minha’. E ela disse: ‘não, essa cadeira não é sua, essa cadeira é do juiz’. E eu falei: ‘Mas eu sou a juíza’. Essa criatura só olhou para o meu cabelo. Ela não olhou pra mim como gente, ser humano, mulher. Aí ela disse: ‘Mas só um pouquinho, deixa eu terminar aqui’. E eu disse: ‘não tem pouquinho. Tem que a senhora, por favor, vai ceder o meu lugar. Porque para chegar aí eu estudei muito. E ainda estudo’. Essa advogada nunca mais apareceu lá.

Processos Na minha carreira como magistrada respondi a dois processos. Na minha família nunca ninguém se viu processada. Isso foi um desespero pra mim. No dia que recebi a intimação, enlouqueci. Foi muito difícil contar um negócio desse para minha família. Teve um processo que cresceu duma forma que um dia eu me preparei aqui em casa para me suicidar (chora). Quando decidi fazer uma carta pra minha família dizendo que eu era inocente, não tinha feito nada… Porque eu tenho vergonha, só isso (chora). Quando me preparei, esse telefone tocou… Foi nessa época que comecei a escrever o livro (”O negro no século XXI“). Mas nos dois casos fui inocentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O CNJ disse que se houve erro da minha parte foi por excesso de zelo com a coisa pública. Essa decisão é, acredito, a minha quinta carta de alforria. Se eu já sabia que eu era honesta, incorruptível, agora eu tenho certeza de que sou mesmo, porque está documentado.

Livros Tenho também um livro sobre sobre mediação de conflitos, mostrando a experiência do Balcão de Justiça e Cidadania, que já está pronto. O nome é“Mediação: uma solução de conflitos”. E escrevi outro sobre cemitério. O nome é“Cemitério: uma abordagem técnica, médica e jurídica”. Escrevi a parte jurídica. Passei trinta dias visitando cemitérios. Foi o seguinte: tem uma moça que vem aqui em casa fazer a limpeza e um dia eu a acompanhei no enterro da sobrinha dela, na Quinta dos Lázaros. Quando cheguei lá e vi aquela situação, fiquei assustada demais. Pensei: ‘meu deus, será que o negro nem na hora de morrer tem dignidade?’ Era mosca, mosquito, crânio de um lado, a dentadura de um outro, tudo assim, exposto. Quando vi aquilo, pensei que tinha que fazer alguma coisa. E ainda tem outro livro que estou aprontando com meu filho, sobre perícia ambiental. Ele é promotor, trabalha em Sergipe. E eu nem quero que ele venha pra cá. Basta eu sofrer.

Crítica / O negro no século XXI

Toda vida dá um livro? A história da baiana Luislinda Dias de Valois Santos renderia um dos bons. Teria aquele tom épico de quem venceu a pobreza e cumpriu uma promessa, deixaria no finalzinho aquela faísca inspiradora capaz de nos fazer acreditar que basta trabalhar e persistir para nos tornarmos quem queremos ser. O professor de Luislinda esperava que ela passasse a vida cozinhando na casa dos brancos, teve a crueldade de lhe dizer isso, mas Luislinda, então com 9 anos, retrucou-o dizendo que na verdade seria juíza. Dito e feito. Tornou-se a primeira juíza negra do Brasil, não à toa a primeira magistrada a proferir uma sentença contra racismo no País.

Uma pena, mas não é disso de que trata seu primeiro livro, “O negro no século XXI” (Ed. Juruá), que Luislinda lança em agosto na Bahia (em junho foi lançado em Curitiba, onde a magistrada morou por oito anos). Em setenta e duas páginas, a juíza tenta fazer um panorama da situação atual do negro em diversas áreas (lazer, educação, trabalho, justiça social, políticas públicas, esporte) e acaba perdendo-se na abrangência desses temas. Luislinda tem o mérito de trocar o ‘juridiquês’ por uma linguagem simples e direta, mas o resultado é um texto que tem mais generalizações que referências, mais lugares-comuns que histórias do seu cotidiano com as quais poderia ter presenteado os leitores.

Leia trecho: “Precisamos garantir aos negros pobres, das periferias, o direito à água potável, ao ar puro, à não contaminação, ao saneamento básico, ao abrigo digno, à alimentação saudável. Isso não ocorre, atualmente, nas grandes metrópoles, que não oferecem políticas públicas para as comundiades periféricas. Poucas são as oportunidades criadas no intuito de construir uma sociedade mais democrática e humana. Quando as necessidades básicas forem garantidas, poderemos alcançar o desenvolvimento de uma classe voltada a Ser mais e não a Ter mais, na qual atualmente o negro poderá integrar-se ao contexto como parte atuante na promoção do desenvolvimento”.

livroLançamento do livro “O negro no século XXI”, de Luislinda Dias de Valois Santos 26 de agosto, na Livraria Saraiva (Salvador Shopping), às 19h30. Já à venda por R$ 19,90.


Um comentário:

  1. Olá Cris, adorei seu blog, já olhei de cabo a rabo, peguei receitas para experimentar, mas tenho que confessar que o que mais gostei dele é porque ele é bem eclético E amei esse post, ótima entrevista!!!
    Ah já estou te seguindo!!!
    Bjão.

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